1. INTRODUÇÃO


A segurança pública tem sido uma das maiores preocupações dos brasileiros. Excetuando-se os dias atuais em que a saúde tem ocupado os primeiros lugares, é a segurança pública a maior reivindicação lembrada pela população em geral.

O assunto, portanto, é atual, embora não lhe seja dada a devida relevância pelos governos, ficando a questão muito mais ao dispor de discursos inócuos do que das verdadeiras ações que urgem serem tomadas para que se evite que cheguemos a situações incontroláveis como já ocorre no Rio de |Janeiro e cujos respingos já começam a se fazer presentes em outros Estados. São Estados que de uma geral maneira, em função da omissão dos governos e, também, dos recursos de que dispõem, descumprem suas obrigações para com a segurança, sonegando direitos ao seu povo e tratando inadequadamente suas polícias, remunerando-as e equipando-as mal. Há, da mesma forma, deficiente trato para com presos, tornando quase que impossível a sua recuperação para a volta ao convívio social, além de desassistir crianças pobres que se amontoam nas ruas como pedintes ou viciadas em drogas.

E assim, a segurança pública vai sendo tratada como algo que pode ser resolvido pontualmente com legislações, medidas e decisões de emergência que, por não terem um estudo mais aprofundado sobre as possibilidades de resultados positivos, acabam agravando a situação e criando esse clima de maior insegurança com o qual a população já vai se acostumando e entendendo que não tem outra alternativa senão fugir das ruas e esconder-se dentro de casa.

O fato é que todos os problemas, sejam de segurança pública propriamente dita, sejam de atribuições de outros setores da administração, acabam caindo nas mãos da polícia como se fossem de sua responsabilidade unicamente e ela fosse capaz de tudo resolver. O paradoxo é tão grande que até governantes que têm a obrigação de prover suas instituições policiais dos devidos meios e recursos para bem desempenharem suas funções, acabam num determinado momento jogando a culpa do seu fracasso a elas, como se estas não fizessem parte da sua administração e não precisassem do necessário apoio governamental para fazer o que a lei lhe determina. Em vez de prover as polícias dos meios necessários ao seu desempenho, discursam animadamente batendo nas organizações como se elas sejam independentes e do governante não precisem.

Sem pretendermos tirar das polícias as suas responsabilidades achando que elas não têm culpa de nada e nos colocarmos na condição daqueles que acreditam que tudo é culpa dos governos que são omissos quanto às suas obrigações, temos a intenção neste trabalho de analisar esse complexo tema da segurança pública, que entendemos como um sistema que engloba todos os segmentos sociais e não está afeto unicamente às instituições policiais que compõem a segurança pública brasileira.


2. AS POLÍCIAS FRENTE À CONSTITUIÇÃO

Embora seja um assunto por demais repetido, sempre é bom que referenciemos sobre dispositivos constitucionais que tratam da segurança pública. É importante para que se mostre que a segurança pública não é um trabalho unicamente das polícias, mas de um conjunto de setores que forma um sistema que deve trabalhar harmonicamente sob pena de nunca se chegar a soluções que satisfaçam a população em geral.
Diz o caput do art. 144 da Constituição Federal:Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I – polícia federal;
II – polícia rodoviária federal;
III – polícia ferroviária federal;
IV – polícias civis;
V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.


Ao atribuir a segurança pública como responsabilidade de todos, o legislador tirou das polícias em geral a obrigação de serem estas os únicos órgãos com atribuições pertinentes à área. Desta forma, apesar de um direito, a segurança pública é, também, uma responsabilidade de todo e qualquer cidadão, ou seja, todos devem assumir seus compromissos para com ela e atuarem de forma efetiva.

Esta regra constitucional simples criou por assim dizer, um sistema de segurança pública do qual não fazem parte apenas as polícias, mas todo um conjunto de órgãos públicos e particulares e sociedade em geral, que se devem empenhar no trato da questão. Ainda que não o diga explicitamente, a Constituição chama à lide todo e qualquer segmento social como responsável. Toda vez, pois, que se disser que a polícia está falhando na sua missão, deve-se questionar até que ponto a sociedade e outros órgãos públicos contribuem para com que tais falhas ocorram. E a sociedade não pode fixar-se em conclusões simplistas de que, para fazer o trabalho complementar à segurança pública, precisa armar-se e se desempenhar tal como tais organizações, mas ter a consciência de que há um conjunto de fatores que influenciam a segurança pública e que precisam ter o devido tratamento por parte de outros segmentos públicos, cujas responsabilidades são fundamentais para que se superem os fatores que contribuem para com os problemas de segurança.

O complexo sistema de segurança pública não pressupõe unicamente a atividade policial em si, mas todo um conjunto de medidas que desembocam na segurança pública. A questão é que mesmo aqueles setores que não estão afetos às polícias acabam sendo tratados por elas. Os problemas sociais ditados pela miséria em geral, pelo desemprego, pelos salários insuficientes para a manutenção de uma família, pela falta ou insuficiência de educação e outros fatores que implicam na criminalidade não são uma responsabilidade da polícia, mas da sociedade como um todo, que precisa envolver-se nestes problemas pesquisando e encontrando soluções e trabalhando diretamente em todos os setores.
A polícia trabalha com as consequências dos fatores que influenciam na segurança pública e não com suas causas, estas bem mais complexas e que precisam de tratamento especializado em cada área, como saúde, desemprego, impunidade, salários que não atendem as necessidades básicas do cidadão, dentre outros fatores de especial importância e que, não raras vezes, são desatendidos pela administração pública como se não fizessem parte das suas obrigações.


3. POLÍCIA DEMOCRÁTICA

Toda vez que se fala em polícia no Brasil idealiza-se a instituição. Tratam-na como se, de repente, vivêssemos num país onde tudo é maravilhoso e apenas a polícia destoa desta regra. Age-se como se o policial seja um alienígena brutalizado e incapaz que acabou de cair em um mundo perfeito onde ninguém comete erros. Só ele os comete. Caídos neste mundo perfeito, os policiais e suas atitudes passam a ser questionados pelos idealistas do sistema, que não entendem que razões levam a polícia a, em alguns casos, tratar com violência determinada pessoa. É como se a violência não existisse e a polícia fosse a responsável por trazê-la ao mundo, enfim, a causa dela e não a sua consequência.

Pretende-se, desta forma, que a polícia brasileira seja diferente de qualquer outra e não trate o criminoso como tal, mas como alguém que precise unicamente de educação e seja ela o ente preparado exatamente para transmitir esta educação. Vê-se a polícia como uma instituição destoante da realidade, uma polícia violenta em uma sociedade que não é violenta, uma polícia corrupta em uma sociedade que não é corrupta, uma polícia despreparada em uma sociedade cujo preparo é exemplo para o mundo. Quer-se uma polícia educada e prestativa como se ela não fizesse parte da mesma sociedade que nada tem de educada e de prestativa.

A polícia não só é um organismo mal conhecido quanto ao seu desempenho. As pessoas ignoram as suas missões, assim como, em muitos casos, a sua capacidade de desempenhá-las em razão dos diversos entraves que existem, sejam de condições materiais, intelectuais e humanas. Toda vez que a polícia é procurada por alguém, pretende esta pessoa que ela seja capaz de resolver todos os seus problemas e não quer saber o interessado se isto está dentro da sua competência ou não. Por não ser uma instituição conhecida, a sociedade acaba mitificando a polícia e acreditando que ela é aquela instituição retratada em filmes que dão notícia de uma incomum competência e capacidade em tudo resolver. Não compreendem que a realidade não é aquela das telas em que tudo se resolve em cerca de duas horas, terminando a história com um longo beijo entre o casal de mocinhos. Diante disto, proliferam as cobranças como se o crime fosse uma atividade a ser combatida unicamente pela polícia. É como se isto não dependesse de um sistema judiciário ágil e eficiente, de um acompanhamento do preso que lhe permita ser recuperado para a volta ao convívio social e de outras medidas preventivas em todos os setores. Nem tudo, portanto, que diz respeito ao crime é problema que deve ser enfrentado unicamente pela polícia.

O fato é que não existem fórmulas prontas para que se tenha no Brasil uma polícia que atenda aos reclamos da sociedade. Aliás, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas temos visto que polícia nenhuma os atende na totalidade.

Esta idealização, a crença de que uma polícia deve ser capaz de resolver tudo sem, em algum momento, usar a violência e que deva ser imune a erros e a desvios de conduta, tem feito com que proliferem fórmulas que, sem qualquer estudo, são apresentadas como milagrosas para que se crie uma polícia ideal.

Como modelo de polícia democrática já se apresentou até a idéia de desmilitarização das polícias militares. Desconhece-se que a mera adjetivação, seja ela de militar ou civil, não é responsável pela maior ou menor competência policial. O que importa é a sua destinação. Se ela, apesar da adjetivação militar não for destinada ou empregada nas atividades que pressuponham combates e tratos com pessoas vistas como inimigas, mas preparada e empregada efetivamente como polícia e voltada ao bem das comunidades, pouco importa que a sua estrutura seja militar ou civil. Chega-se a tal contradição que, ao mesmo tempo em que se invoca a necessidade de desmilitarização das polícias, clama-se pelo emprego das forças armadas no policiamento, que são militares por excelência.

A formação dos seus efetivos e a visão de que a sociedade deve sempre ser vista como amiga, mesmo naqueles casos em que precisam ser coibidos crimes ou simples desvios de conduta, é que vão determinar a sua maior ou menor eficiência e não a mera adjetivação que unicamente define a sua estrutura como corpo.

Trata-se o Brasil como se o país fosse o único no mundo a ter uma polícia adjetivada de militar. Desconhece-se que na Itália ainda existem os Carabinieri, a Espanha ainda conte com a sua Guardia Civil (que apesar da adjetivação, é militar), a França ainda disponha da Gendarmerie, o Chile possua uma das polícias mais respeitadas da América Latina, os Carabineros, e a Holanda mantenha a Rijkspolitie, todas elas organizações militares voltadas à atividade policial como o é a Polícia Militar brasileira.

Uma polícia democrática, independente da adjetivação de civil ou de militar, precisa deixar de ser conservadora, de centralizar-se em conceitos e comandos apegados a tradições que fundamentaram sua criação e abdicar de manter-se destoante das necessidades sociais como se a polícia não fizesse parte da mesma sociedade que jura defender.

O estudo e a adequação de comportamentos policiais às necessidades e interesses da comunidade tendem a fazer da polícia uma instituição democrática. Ela assim será à medida que atenda às necessidades individuais e de grupos que requerem seus serviços da mesma forma que atende os interesses dos governos, desde que estes sejam voltados aos interesses da população, orientando suas atividades conforme requeira o cidadão. Um policial amigo, prestativo, capaz de resolver conflitos e consciente de que faz parte da sociedade e não é alijado dos seus interesses, com certeza fará uma polícia democrática.

Não é preciso, portanto, macro mudanças nas instituições policiais para que elas sejam democráticas. Basta que se mudem alguns comportamentos relacionados com o trabalho e que o policial interprete que o crime e o criminoso são coisas excepcionais e não a regra com que devem ser tratados os cidadãos.


4. O PÚBLICO E SUAS EXIGÊNCIAS

Toda a pessoa que procura a polícia quer soluções imediatas para o seu problema. Para ela pouco importa se o que se apresenta é um assunto de polícia ou não. Conforme o encaminhamento do fato, a polícia se lhe parece, ora fraca e ineficaz, ora violenta e autoritária. Tudo acaba sendo responsabilidade da polícia como se ela não dependesse de um complexo sistema legal ao qual se submete, como ocorre com qualquer órgão da sociedade. Na idéia das pessoas o que importa é que o fato seja resolvido e, se isto não ocorre logo, acaba culpando a polícia. É como se a polícia não fosse uma organização como qualquer outra e não apresente, como estas, com incertezas quanto a suas decisões e encaminhamentos de questões.

Um corpo policial não deve seguir procedimentos imutáveis que contemplem todas as questões como se tudo dependesse de uma fórmula matemática a ser aplicada a todos os problemas indistintamente. Conforme o caso, a polícia deverá ser mais meticulosa, mais desconfiada, mais impertinente e, em alguns pontos, até usar mais o mecanismo da força e da pressão. É isto que não entende a pessoa que procura os serviços policiais, dado que apresenta o seu problema como se ele fosse o único no mundo e o mais importante a precisar da atenção exclusiva da polícia.

Poderíamos pegar inúmeros exemplos, mas vamos ficar com a questão da prostituição. Os moradores de regiões onde ocorre com mais incidência a prostituição reclamam da ineficiência e do descaso policial que não coíbe a prática. As profissionais do sexo, por sua vez, reclamam da ingerência e da violência policial que procura retirá-las das ruas prejudicando seu comércio. Desta forma, a polícia sofre ataques por ambos os lados, ora dos moradores que reclamam da sua omissão, ora das profissionais que reclamam da sua ação.

Como nenhum dos interesses é resolvido, nem o dos moradores porque as profissionais não são retiradas definitivamente do local, nem o das profissionais que continuam sendo molestadas pela polícia, acabam as instituições policiais convivendo com as acusações de inoperantes e omissas por um lado e de violentas e autoritárias por outro, isto quando não surgem outras relativas à corrupção, estas próprias de qualquer lado.
O que se vê é que nem os moradores reclamam diretamente às profissionais, que se constituem no seu problema, nem as profissionais reclamam aos moradores, que são os que efetivamente causam os entraves à sua atividade. Optam ambos por reclamarem da polícia como se isto fosse um problema seu e não de outros setores que têm a incumbência de tratar do caso, seja encontrando alternativas de trabalho bem remunerado às profissionais, seja encontrando lugares onde possam exercer seus serviços sem que outros se sintam prejudicados.
Obrigada a envolver-se, assim, em assuntos que deveriam ser tratados por órgãos de assistência social de Estados e municípios, a polícia acaba desviando seus serviços e atenção de outros casos em que deveria se empenhar com mais afinco por se tratarem estes das suas reais competências. Fazendo o que não lhe está afeto legalmente, acaba sendo responsabilizada como ineficiente e omissa também por não tratar adequadamente aquilo que lhe é afeto por competência legal.

Convencionou-se desta forma, atribuir à polícia a competência de resolver todo e qualquer problema. Ela se transformou no desaguadouro de todas as mazelas sociais, independente de serem estas da sua competência ou da de outros órgãos. Se o médico não atende no posto do SUS, chama-se a polícia. Se o mendigo está na esquina abordando carros, chama-se a polícia. Se o menino anda de bicicleta sobre a calçada e prejudica os pedestres, chama-se a polícia. Se falta ambulância para levar uma parturiente ou qualquer doente ao pronto socorro, chama-se a polícia. Se o vendedor ambulante não tem licença da prefeitura para comerciar, chama-se a polícia. Isto já se enraizou de tal forma na cultura popular que, se a polícia não atende, é acusada de omissa. Não há cobranças aos órgãos responsáveis, mas à polícia unicamente.

Diante destes fatores que já fazem parte da nossa cultura, é natural que a polícia, sobrecarregada de tarefas enquanto outros órgãos descansam à noite, nos feriados e fins-de-semana, seja tida como ineficiente, eis que, fazendo mal, apesar da boa vontade, o que não é de sua competência, acaba deixando de fazer bem feito o que sabe e é da sua atribuição.


5. LIMITES DA AÇÃO POLICIAL

Já referimos antes que é normal que as pessoas procurem a polícia para qualquer problema, independente deste ser ou não de sua competência, e que isto já está arraigado no entendimento popular. No mundo inteiro as polícias se ressentem disto.

É preciso que as pessoas compreendam sobre atos criminosos e outros que meramente ofendem a moral. Os primeiros são puníveis conforme as suas circunstâncias, ao passo que os segundos não o são necessariamente. Desta forma, qualquer que seja o crime, imprescindível se faz a atuação policial, quer para preveni-lo, quer para reprimi-lo. Não pode a polícia furtar-se disto. Já quanto a atos que unicamente afetam a moral e os costumes, estes não são necessariamente puníveis. Sabiamente agem os legisladores ao não criminalizar tudo para que não se limite demasiadamente a liberdade e para que não se torne intolerável a vida do cidadão.
Como o entendimento acerca de atos ditos imorais varia de pessoa para pessoa, há os que não os toleram e os que, aceitando ou não, os toleram e não exigem repressão a eles. O fato é que alguns atos, embora a polícia seja sempre acionada em caso de sua ocorrência, não representam uma atribuição sua coibi-los por não serem eles criminalizados. Não estão, pois, dentro dos limites de atuação policial, apesar de, na maioria das vezes, veja-se a polícia na obrigação de atuar, ainda que unicamente para dar explicações nem sempre bem recebidas pelo reclamante.

Alguém, por exemplo, que ande de bicicleta sobre a calçada prejudicando o trânsito de pessoas, não comete delito algum. As Pessoas prejudicadas, no entanto, recorrem à polícia e exigem providências. Na maioria dos casos o policial consegue convencer o ciclista a não andar com o veículo sobre a calçada, mas se não o conseguir, pouco poderá fazer em razão de que o fato não é punível. Difícil, no entanto, será convencer o reclamante de que não pode fazer muito mais que isto.

Relevante hoje é o fato que diz respeito a pessoas que se espalham pelas sinaleiras de avenidas movimentadas para pedirem esmolas. Uma realidade nacional diante da contradição dos anúncios de que não há mais fome no país. Já há entendimentos de que, em vista da precária situação econômica de razoável parcela da população brasileira, comportamentos ainda tidos como criminosos ou contravencionais devam ser excluídos do rol dos atos ilícitos. No entanto, não raras vezes é a polícia instada a atuar. Apesar de o ato ser punível e previsto em lei como ilegal, temos que reconhecer que a situação no Brasil tem induzido muitas famílias a estas práticas para poderem sobreviver. Muitas pessoas praticam a mendicância com o objetivo de sobreviver num país onde o desemprego e a falta de comida ainda persiste. A própria vadiagem é controvertida diante do desemprego crescente. O envolvimento puro e simples da polícia para estes casos não é a solução do problema, até por que, retirado da rua o mendigo, logo ele retornará. O problema, no entanto, é que, existindo, as autoridades ainda insistam em tratá-lo como caso de polícia, quando deveriam tratá-lo como questão social e, com este sentido, desenvolver estudos capazes de fazer com que haja a erradicação do problema.

Ocorre que a polícia acaba sendo chamada para resolver tudo. O difícil é convencer as pessoas de que determinada coisa não tem solução policial e que outro órgão deve ser recorrido. Desta forma, em especial quanto ao desconhecimento da atividade policial, vê-se que as organizações acabam sempre sendo envolvidas em tudo como se fossem os únicos órgãos presentes e atuantes na administração pública.

Esta noção errada acerca dos limites da atividade policial tem feito com que muitas pessoas acabem descontentes e sejam críticas contumazes da polícia. Basta que se verifiquem pesquisas de opiniões que, em todos os casos, sempre colocam a polícia como uma das últimas classificadas em questões de competência e de confiança. Será que, no entanto, este grau atribuído de incompetência e desconfiança não estará diretamente relacionado com os outros diversos casos em que a polícia deixou de resolver exatamente porque o trato não era de sua competência e lhe era, por isto, impossível dar o encaminhamento que deveria ser buscado em outro órgão que, ironicamente, está classificado nos primeiros lugares quanto à competência e confiança?


6. SISTEMA DE SEGURANÇA PÚBLICA

Vimos, ainda que de forma simplificada, que a segurança pública não diz respeito unicamente às polícias, mas a todo um conjunto de setores da sociedade que devem empenhar-se conforme suas necessidades e condições no combate à violência. Quando se fala em violência, no entanto, não se pode centralizar os estudos unicamente naquelas ações e reações repressivas que estamos acostumados a ver se expandindo pelo Brasil como se isto seja a solução para a criminalidade. É preciso que as atenções sejam direcionadas a fatores que se constituem como causas da violência e da criminalidade como forma de combatê-las no seu nascedouro, condição básica indiscutível para que tenhamos tais males diminuídos em seus índices.

O combate repressivo contra a violência acaba por aumentá-la em ambos os lados, quer das instituições policiais que acabam usando a força para tentar debelá-la, quer por parte dos delinquentes, que aumentam o seu potencial de ofensas à integridade das pessoas na tentativa de superar as polícias quanto a suas reações. Paradoxalmente, sabe-se, que ao ser combatida a violência e o crime com o uso de reações fortes significa que as ações preventivas falharam e está-se aumentando a violência, ainda que esta seja legal e necessária quanto à sua prática. A violência, ainda que necessária, desencadeada pelo estado só se justifica se comprovadamente toda e qualquer outra ação preventiva é impossível de ser praticada porque o crime e a delinquência, naquelas condições, já chegaram ao descontrole. Enquanto for possível o uso de ações preventivas, estas devem ter prioridade, ainda que necessárias sejam ações de força para controlar situações pontuais que se demonstrem impossíveis de ser controladas pela via preventiva.

Só para citarmos o Rio de Janeiro como exemplo, está pacífico que o aumento da criminalidade e da concentração de criminosos que traficam drogas e armas nas favelas se expandiu exatamente pela ausência do Estado, que não deu a devida atenção aos moradores que reclamavam alguma atenção. Lá se optou por não desenvolver ações preventivas de proteção da saúde, da educação, do emprego e de outros fatores sociais deficientes da população e o criminoso viu esses locais como terra fértil para o desenvolvimento das suas ações. Ausente o Estado, a situação chegou a tal ponto de descontrole que já se fala em “estado paralelo” para definir como os comandos das favelas se estão desenvolvendo, sendo disputados e ganhando corpo com a dominação de grupos que até já impõem normas de como funcionar aquelas sociedades, criando “leis” e “justiças” através das quais impõem punições aos que contrariam as “normas” que são impostas pelos que controlam as diversas sociedades.

Privilegia-se tanto as ações policiais repressivas, que o rendimento e a eficiência das organizações estão sendo medidos, quase sempre, pelo número de prisões feitas. Ora, se a eficiência se mede pelo número de prisões, significa que o crime praticado pela pessoa presa já ocorreu. Se já ocorreu, falhou a polícia na sua missão primordial de prevenir, de dar proteção ao cidadão antes que ele fosse mais uma vítima a fazer parte das estatísticas que diariamente dão conta de que está cada vez mais arriscado sair nas ruas. E aqui não está presente nenhuma idéia alarmista, mas a constatação feita a partir, inclusive, de declarações feitas por dirigentes policiais que se orgulham em afirmar que sua corporação está trabalhando mais porque os presídios estão cada vez mais lotados pelas prisões feitas. A autoridade deveria orgulhar-se não disto, mas do número de delitos que evitou pela presença contínua da polícia nas ruas e pelas medidas paralelas tomadas por outros órgãos que, tal como a polícia, devem estar presentes atuando nas suas respectivas áreas.

Está visto que não se pode tirar da polícia a parcela de culpa que tem por não agir conforme suas obrigações constitucionais. Mas a culpa não é só dela, dado que não compete à polícia atuar na saúde, na educação, no emprego, na renda e noutras necessidades comuns a qualquer setor das comunidades.

Assim, quando se fala em sistema de segurança pública, não se deve ter em mente unicamente os órgãos nominados que compõem o artigo 144 da Constituição Federal. A segurança pública, como obrigação de todos, deve ser observada pelas pessoas em geral, que podem fazer alguma coisa para diminuir a criminalidade e seus efeitos. É uma conclusão simplista, no entanto, afirmar que alguém que gradeia sua casa para dificultar a ação de ladrões já está fazendo a sua parte, quando existem medidas inúmeras que estão ao dispor de qualquer um para serem adotadas, aqui se incluindo trabalhos voluntários e doações em benefício de entidades assistenciais e educacionais que atuam com imensas dificuldades nos seus respectivos objetivos. Imagine-se o que representa para famílias carentes a disponibilidade de maiores recursos permitindo uma melhor educação para uma criança.

A atuação eficiente na segurança pública imprescinde da formação cultural desenvolvida pelos órgãos educacionais, da mesma forma que é importante que os responsáveis pela saúde sejam atuantes em todos os setores das comunidades, como forma de melhorar as condições de vida das pessoas. As organizações responsáveis pelas demais condições sociais também se fazem necessárias ao acompanhamento das famílias, como as entidades responsáveis pela formação profissional e pela preparação para o enfrentamento de todas as dificuldades financeiras que são comuns, inclusive a criação de vagas para empregos que deem às pessoas condições de suprir suas necessidades, pelo menos as mínimas. Tal como estes órgãos que trabalham indiretamente em atividades preventivas e que têm influência na segurança pública, outras instituições que não fazem parte dos entes relacionados no artigo 144 da Constituição Federal precisam acompanhar todos os seus trabalhos, como as instâncias judiciárias e o ministério público. Não se pode falar em segurança pública se não estiverem compondo o seu segmento estas duas instituições, a quem compete dar o coroamento ao trabalho policial. Este trabalho, no entanto, não pode ser pensado isoladamente, mas integrado de forma a aperfeiçoá-lo até que todos os interesses das comunidades sejam atendidos, eis que tudo deve ser desenvolvido em seu benefício.

Importante da mesma forma é o trabalho legislativo executado pelo respectivo poder, o qual tem a obrigação de criar leis voltadas à proteção do cidadão. Se a legislação penal e de execução penal não for adequada à realidade e não sirva efetivamente como inibidora de condutas ilegais, certamente o trabalho policial, como o de outras instituições que têm a obrigação de aplicá-la, será sempre incompleto e ineficiente, dada a falta de suporte ao julgador para eficientemente retirar do convívio social os criminosos até que sua recuperação seja efetiva e reconhecida.

Aos órgãos policiais relacionados e que compõem o artigo 144 da Constituição Federal, portanto, devem ser acrescentados todos os demais, que em maior ou menor escala são importantes e decisivos para que a segurança pública seja desenvolvida de forma satisfatória a atender as necessidades e exigências da população, a quem se destina qualquer serviço público.

Toda vez que se falar, pois, em segurança pública, tenhamos em mente sempre as responsabilidades de todos. Só assim teremos órgãos policiais que cada vez menos precisarão envolver-se em ações representativas da violência necessária porque o Estado, sem omitir-se das suas atividades gerais, só terá de fazer a repressão daquilo que, por mais que se tenha empenhado em coibir, não conseguiu porque crimes e desvios de conduta fazem parte do ser humano e estão presentes em qualquer parte do mundo.

Deixemos de ver a violência, portanto, como algo que tem sua origem na natureza humana. Interpretemo-la como um fenômeno que faz parte da história e está presente na sociedade debatendo as particularidades sociais que influenciam cada grupo particularmente e no seu conjunto pelas influências cada vez mais atuantes em razão das facilidades de comunicação e de interação que compõem a humanidade.


7. CONCLUSÕES

É preciso que a violência, como fenômeno biopsicosocial, não seja vista como algo que acomete unicamente algumas sociedades em função de determinadas peculiaridades que se fazem presentes, em especial nos locais de maiores carências sociais. Ela é um fenômeno que faz parte da humanidade, integrando a consciência histórica e pessoal dos indivíduos. Está presente em todo e qualquer setor da vida humana e não pode ser combatida a partir de conceitos ideológicos, mas de ações que contemplem todos os estudos necessários ao seu conhecimento e origens, quer no campo conceitual geral, quer na particularização de determinados fenômenos que, mais ou menos, se acentuam em algumas sociedades.

A polícia não deve ser vista como inimiga da sociedade, conforme muitas vezes é posta publicamente. Ela não é causa da violência, mas consequência dela e, por isto, precisa ser conhecida quanto às suas destinações e necessidades de atuar conforme se deparam as situações que enfrenta e que precisam ser resolvidas por imposição da lei e do interesse individual ou coletivo. A violência policial deve ser encarada como algo que está sempre presente na vida dos profissionais que atuam na área e que ela é, na maioria dos casos tal como se apresenta, necessária pela sua legalidade que impõe a defesa da sociedade e do próprio agente. Não deve ser confundida nem generalizada com atos de desvio de conduta que acometem alguns profissionais, nem estes delitos devem ser considerados como regras a ponto de acharmos que fatos isolados são a prática que norteia todas as corporações. Nenhum policial nasce como tal. Ele é um ser humano como qualquer outro que pertence à mesma sociedade e, assim, dotado dos mesmos defeitos e virtudes. Precisa também ser compreendido.

Enfim, a solução dos problemas de segurança pública não está afeta unicamente às polícias, mas a todos os segmentos da sociedade, que precisam envolver-se nas questões, tendo consciência da importância que seu trabalho representa na condução de cada ação que desempenham.


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*Alberto Afonso Landa Camargo é Coronel da reserva remunerada da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, Professor graduado em Letras e em Filosofia, Bacharel em Direito, escritor com livros e vários trabalhos publicados e pesquisador