1. Cabo de Guerra: cidadão versus o “status” de autoridade policial

O cabo de guerra, que já foi modalidade olímpica (1900 a 1920)[2] , consiste em disputa de força na qual as equipes oponentes buscam vencer uma a outra pela demonstração de força bruta.

Pois bem, hodiernamente tem sido objeto de acalorada discussão a possibilidade constitucional da lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) por membros das polícias administrativas (Polícia Militar e Polícia Rodoviária Federal). Todavia, não obstante a relevância do tema, parece-nos que o desfecho que beneficiaria mais de 206[3] milhões de ocupantes do solo brasileiro ainda tardará, pois, máxima vênia, o debate que deveria ter por norte unicamente os direitos individuais e coletivos, terminou sendo transformado por aqueles que tentam a elevado custo manter a exclusividade do “status”[4] de autoridade policial[5], num cabo de guerra desleal e ilegítimo, cujo oponente é o próprio cidadão.

Afinal, tanto o guardião da Constituição (STF – Art. 102, caput, CF/88) e demais órgão do Poder Judiciário, alguns por meio de provimentos e instruções normativas[6] , inclusive, quanto o órgão ministerial (MP), são, salvo raras dissidências, favoráveis à lavratura do TCO por membros da Polícia Militar, entretanto, tal convergência não é comungada por aqueles que buscam manter a exclusividade do “status” de autoridade policial. Para eles, tal lavratura configuraria usurpação de função. Nada mais descabido, conforme demonstrado adiante.

Assim, o cidadão assiste a tais discussões estarrecido, atônito e incrédulo, uma vez que certamente lhe parece muito estranho o esforço hercúleo daqueles que insistem em se manterem intransigentes de um dos lados deste disparatado cabo de guerra, obrigando o legítimo destinatário das benesses da segurança pública a assumir o outro lado do cabo, uma vez que o maior prejudicado pela não aceitação da lavratura do TCO feita por policiais militares, é justamente o cidadão.

1.1. Nota técnica da Federação Nacional dos Policiais Federais – FENAPEF

Em nota técnica publicada no dia 1º de novembro de 2016[7], a Federação Nacional dos Policiais Federais (FENAPEF) deixa claro que “a “autoridade policial” é atributo indissociável e irrenunciável de todos os agentes públicos policiais que integram os órgãos de polícia definidos no art. 144 da Constituição Federal e que concretizam o poder do Estado na atividade de policiamento do País” – (Grifei).

Logo, fica evidenciado que a exclusividade do “status” de autoridade policial é reivindicada apenas pelos Delegados de Polícia, uma vez que os demais membros da Polícia Federal, p. ex., são terminantemente contra essa exclusividade, tendo, a nota supra, levantado-se contra Projetos de Lei[8] que visavam retirar o atributo de “autoridade policial” dos policiais e restringi-lo exclusivamente ao cargo de “delegado de polícia”

1.1.1. Conceito de Autoridade Policial

A nota técnica da FENAPEF cita o ínclito magistério de ÁLVARO LAZARRINI que conceitua a Autoridade Policial como sendo “um agente administrativo que exerce atividade policial, tendo o poder de se impor a outrem nos termos da lei, conforme o consenso daqueles mesmos sobre os quais a sua autoridade é exercida, consenso esse que se resume nos poderes que lhe são atribuídos pela mesma lei, emanada do Estado em nome dos concidadãos.” (Grifei)

A aludida nota técnica ainda contribui para o fim do cabo de guerra acima mencionado ao trazer à baila um conceito extensivo de autoridade policial, dizendo que se trata de “todo servidor público dotado do poder legal de submeter pessoas ao exercício da atividade de policiamento.” E completa esclarecendo que “há antigo acórdão do STF, segundo o qual ‘soldado do policiamento de uma cidade do interior, fardado e armado, está investido de uma parcela do poder público’; ‘soldado da polícia, sempre fardado e armado, é a encarnação mais presente e respeitada da autoridade do Estado… (RTJ, 75:609).’”

2. Lavratura do TCO pelas Polícias Administrativas

A Constituição Federal de 1988 é reconhecidamente a Constituição cidadã, tendo a cidadania como um de seus fundamentos (Art. 1º, II, CF/88). Além disso, possui amplo rol de direitos e garantias individuais e coletivos expressa e implicitamente em seu corpo, sendo a primeira constituição brasileira a tratar a segurança pública de forma sistematizada, trazendo os princípios e regras que norteariam este importante aspecto do Estado Democrático de Direito.

Pois bem, é neste contexto e atendendo ao comando presente no Art. 98, I, CF/88, que surge a Lei 9.099/95, a qual somente encontrará legitimidade constitucional se receber interpretação que possibilite, dentre outros, a celeridade processual e a duração razoável do processo (Art. 5º, LXXVIII, CF/88), permitindo um real e verdadeiro acesso à justiça, devendo o querer do constituinte ser entendido, como lecionam LENIO LUIZ STRECK e GILMAR FERREIRA MENDES, não como “mera formulação de um novo tipo de procedimento, mas, sim, como um conjunto de inovações que envolvem desde a nova filosofia e estratégia no tratamento de conflitos de interesses até técnicas de abreviação e simplificação procedimental…”[9] (Grifei)

Para tanto, o legislador infraconstitucional trouxe a obrigatoriedade da observância dos princípios ou critérios da oralidade, simplicidade, informalidade e economia processual (Art. 2º, Lei 9.099/95), quando da aplicação do referido diploma.

Neste diapasão, a interpretação do Art. 69[10] da citada Lei 9.099/95 que melhor se coaduna com a Constituição cidadã de 1988 é aquela que reconhece como legítima a lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência por membros da Polícia Militar, p. ex., justamente por se tratar apenas, segundo magistério de Ada Pellegrini Grinover, de procedimento mais detalhado[11] que o Boletim de Ocorrência, devendo, por determinação legal, substituir o Inquérito Policial nos crimes de menor potencial ofensivo[12] – aqueles com pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa (Art. 61, Lei 9.099/95).

Ademais, utilizando novamente a inteligência de Ada Pellegrini Grinover- uma das integrantes da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto da Lei 9.099/95 – ,a nota técnica da FENAPEF aduz que: “qualquer autoridade policial poderá dar conhecimento do fato que poderia configurar, em tese, infração penal. Não somente as polícias federal e civil, que têm a função institucional de polícia judiciária da União e dos Estados (art. 144, § 1°, inc. IV, e § 4°), mas também a polícia militar”.[13]

Alertamos, todavia, para a acirrada controvérsia doutrinária sobre o tema, havendo inclinação da doutrina majoritária para a não aceitação da lavratura do TCO pela polícia administrativa, sendo essa a posição de Cezar Roberto Bitencourt, p. ex.

2.1. Vantagens para o cidadão do TCO lavrado por membros da Polícia Militar

Em artigo de sua autoria[14], Andréia Cristina Fergitz elenca algumas das principais vantagens da lavratura do TCO por membros da Polícia Militar, aduzindo que: “O policial militar é, na grande maioria das vezes, a primeira autoridade policial a chegar ao local da ocorrência, terá melhores condições de prestar auxílio imediato ao cidadão, reduzindo o tempo de resposta na solução dos problemas. A lavratura do Termo Circunstanciado no local da ocorrência agiliza o atendimento, evita transtornos e dispensa a condução das partes à Delegacia de Polícia, localizada, por vezes, a grandes distâncias.”

É possível identificar ainda em seu artigo outra importante consequência prática da lavratura do TCO por policiais militares: “A atuação do policial militar na lavratura do termo circunstanciado diminui a ‘cifra negra’, também denominada criminalidade oculta, ou seja, o conjunto de informações reais que não chegam às estatísticas dos órgãos de segurança pública, em virtude de o cidadão ter registrado ou não a ocorrência em um Distrito Policial.”

2.2. Da Constitucionalidade da Lavratura

Aqueles que pretendem manter a exclusividade do “status” de autoridade policial argumentam dizendo que a lavratura do TCO por membros das polícias administrativas seria inconstitucional, pois, configuraria usurpação de função atribuída às polícias judiciárias, pois caber-lhes-ia além do cumprimento das ordens judiciais, a investigação das infrações penais.

Ora, até mesmo o método gramatical, não obstante ser o menos preciso, é capaz de nos revelar parte da mens legis do Art.144, § 4º, CF/88, o qual é objetivo e preciso ao determinar que: “Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” (Grifei)

Gramaticalmente, apurar é aperfeiçoar, averiguar, fechar, liquidar, esmerar-se. Logo, a função de investigar requer a prática de atos mais densos, complexos que vão além da simples prática de registro de dados, tornando-se necessária, muitas vezes, a prática de diligências a fim de levantar a autoria e materialidade das infrações penais, o que, evidentemente não acontece na lavratura do TCO, até porque, os princípios que regem o procedimento destinado aos crimes de menor potencial ofensivo, buscam exatamente o oposto, ou seja, a resolução simplificada, baseada numa informalidade estratégica, cujo escopo é oferecer uma resposta célere, ausente de custos elevados ao jurisdicionado, ofertando-lhe uma resposta imediata, dentro de uma razoabilidade, evitando a malfazeja impressão de impunidade.

Conclusão

Por fim, longe de querer ser conclusivo, o propósito deste singelo texto foi o de chamar a atenção de todos para o estapafúrdio e infrutífero cabo de guerra estabelecido entre aqueles que almejam a exclusividade do status de autoridade policial e o cidadão. É necessário que as autoridades competentes se sensibilizem ainda mais e de forma decisiva para as vantagens da lavratura do TCO por membros da Polícia Militar, que, conforme amplamente demonstrado, são autoridade policiais, passando, então, a somarem forças com o cidadão que a cada dia está cobiçoso de uma segurança pública com números menos acanhados, sobretudo no que diz respeito à celeridade dos procedimentos que antecedem a persecução penal. Ressalta-se, ademais, que cabe aos próprios membros das Corporações militares entenderem que, diferente do que muitos, equivocadamente, sustentam, isso não é usurpação de função e menos ainda, aumento da demanda das frentes de serviço, pois, não obstante ser esta a impressão primeira, na verdade, quando a lavratura já estiver incorporada aos procedimentos da praxes policial-militar, os ganhos serão imensamente superiores.

NOTAS:
[1] – Prof. Sérgio Nunnes: Especialista em Direito Constitucional, Especialista em DIREITO ADMINISTRATIVO MILITAR, Professor Universitário no Curso de Direito, já tendo ministrado aulas no Centro universitário Unirg (Gurupi), Faculdade Serra do Carmo (Palmas), Faculdade FAPAL/OBJETIVO (Palmas), Faculdade UNEST (Paraíso-TO), Professor em preparatórios para concursos públicos, Palestrante, Coach, Autor de Artigos Científicos (Jusnavigandi, Âmbito Jurídico, Editora Plenum), Coautor do livro “Estatuto PM-BM-TO Comentado: Artigo por Artigo”, Subtenente PM/TO lotado no Quartel do Comando Geral em Palmas e Consultor Jurídico.
[2] – Disponível na Internet: <https://www.olympic.org/>. Acesso em: 01 de maio de 2017.
[3] – Segundo o IBGE, a estimativa da população brasileira em 1º de julho de 2016 era de 206.081.432. Disponível na Internet: <https:// http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2016/estimativa_dou.shtm>. Acesso em: 01 de maio de 2017.
[4] – Utilizamos aspas, pois, acreditamos que enquanto atributo, autoridade policial é reservada, conforme pontua ÁLVARO LAZZARINE, a “todo policial, de acordo com a investidura que ocupe na hierarquia policial respectiva”, mas, enquanto prerrogativa exclusiva de determinado cargo (Delegado), trata-se apenas de status, não de atributo.
[5] – MONTEIRO DE CASTRO, Henrique Hoffmann. Termo circunstanciado deve ser lavrado pelo delegado, e não pela PM ou PRF. Disponível em http://www.conjur.com.br//. Acesso em 01 de maio de 2017.
[6] – Provimento 04/99 do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina; Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, Instrução n. 05/04, de 2 de abril de 2004; Provimento 758 de 14/07/2001 do Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo.
[7] – Disponível na Internet: < http://www.fenapef.org.br/>. Acesso em: 01 de maio de 2017.
[8] – PL nº 6433/2013 de autoria do Dep. Bernardo Santana de Vasconcellos (PR/MG) e PL nº 7/2016 de autoria do Deputado Sergio Vidigal (PDT/ES), que alteram dispositivos da Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para retirar o atributo de “autoridade policial” dos agentes públicos policiais e restringi-lo ao cargo de “delegado de polícia”.
[9] – CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F; SARLET, Ingo W; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
[10] – Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.
[11] – GRINOVER, Ada Pellegrini; FILHO, Antonio Magalhães Gomes; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 111.
[12] – Segundo magistério do Promotor de Justiça Renato Brasileiro de Lima: “o inquérito policial se vê substituído pela elaboração de um relatório sumário, contendo a idenditifcação das partes envolvidas, a menção à infração praticada, bem como todos os dados básicos e fundamentais que possibilitem a perfeita individualização dos fatos, a indicação das provas, com o rol de testemunas, quando houer, e, se possível, um croqui, na hipótese de acidente de trântito. Tal documento é denominado termo circunstanciado, peça esta semelhante a um boletim de ocorrência.” (LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011, p. 222.
[13] – Disponível na Internet: < http://www.fenapef.org.br/>. Acesso em: 01 de maio de 2017.
[14] – FERGITZ, Andréia Cristina. Policial Militar: Autoridade Competente Para Lavratura Do Termo Circunstanciado. Disponível em http://www.pm.sc.gov.br/ Acesso em 01 de maio de 2017.